SOFRIMENTO
ABENÇOADO
( DO LIVRO “SEEING GOD
EVERYWHERE” DO SWAMI SHRADDHANANDA )
Uma
mãe suporta corajosamente a dor do parto por ser esta dor necessária para que
ela tenha o bebê. Uma pessoa cuidando de um parente adoentado ou amado amigo, pode ter que esquecer tanto a comida quanto o sono, não se
importando com essas privações. Um cientista que passa meses realizando uma
pesquisa na região antártica geralmente não se queixa das terríveis
austeridades envolvidas no projeto.
Exemplos
familiares como esses podem ser extraídos de muitas situações na vida. É
verdade que é um instinto natural do ser humano evitar a dor, mas frequentemente temos que cortejar
o sofrimento em favor de nossa própria felicidade. O termo “sofrimento
abençoado” não é uma contradição.
No
que se refere à vida espiritual o sofrimento não deve ser meramente suportado mas, muitas vezes, amado. Para muitos santos e profetas,
momentos de grande agonia se tornaram a porta da iluminação. O filósofo Sankhya, Ishwarakrishna não foi
nem dogmático nem pessimista quando formulou a pré-condição da busca espiritual
como sofrimento: “Uma pessoa se volta para uma investigação mais elevada na
vida a partir da ocorrência de três tipos de sofrimento.”
( 1. Sankhya Karika, Verso
1o . os “três sofrimentos são: a) - adhyatmika, sofrimento subjetivo,
o resultado de doença física ou mental; b) – adhibhautika, sofrimento externo
causado por outros seres humanos ou animais, ou seja, ser atingido por um carro
ou mordido por uma cobra; c) adhidaivika, sofrimento
resultante de calamidades naturais como terremoto, enchente ou fogo, ect. )
Se estamos sempre cercados pelo prazer, e não
temos oportunidade de experimentar a pobreza, inanição, doença ou perda,
teremos poucas chances de procurar o Eterno, que se encontra por trás do
transitório. A centelha da renúncia não se acendeu no Príncipe Siddharta enquanto ele se encontrava cativo nas paredes da
suntuosidade real; isso somente ocorreu quando ele viu as sombras da
infelicidade humana com seus próprios olhos.
“Abençoados
os que choram pois eles serão consolados”, disse Jesus
Cristo. Por “consolo” Cristo deve ter se referido à bem-aventurança de Deus. O
preço por essa experiência é o pranto, o sofrimento, ou seja, a perda, a
desonra, a desgraça, enfermidade, frustração e outros pesares. A fome e a sede
são seguramente inimigos da vida. Mas essas mesmas
privações podem ser amigas do buscador espiritual que está perseguindo a
verdade que se encontra além desta vida. “Abençoados os que
tem fome e sede de justiça pois eles serão saciados,” Cristo declarou.
O
sexo como parte da senda do dharma, ou justiça, é um
valor muito reconhecido em nossa sociedade. Sri Krishna diz no Bhagavad Gita, “Eu sou o desejo em todos os seres que não é
contrário ao dharma.” Mas em em um estágio mais elevado de nossa vida espiritual
a castidade intransigente se torna a regra. Lemos no Gita,
“para alcançar o propósito que aspiram eles vivem uma vida de continência.” A
completa continência, embora não necessária em numerosas vocações da vida, é
uma obrigação na vida espiritual mais elevada. Jesus Cristo disse “Com efeito,
há eunucos que nasceram assim pelo ventre materno; há eunucos que foram feitos
eunucos pelos homens; e há eunucos que se fizeram eunucos por causa do reino
dos céus. Quem tiver capacidade para compreender, compreenda!”
A
última sentença desse ensinamento desse ensinamento é expressiva. Cristo não
quis determinar o absoluto celibato sobre todos; há gradações na vida
espiritual. A pessoa que mantém relações sexuais com seu cônjuge, pode, naturalmente, praticar a religião e progredir em uma
considerável extensão. Mas experiências espirituais mais elevadas requerem que
a consciência do corpo seja atenuada; e isso é impossível sem que o sistema
nervoso seja liberado dos impulsos do sexo. Por isso Cristo disse “o que tiver
capacidade para compreender, compreenda.” Na história religiosa da humanidade,
muitos homens e mulheres de forma voluntária “se fizeram eunucos por causa do
reino dos céus.” Eles foram ridicularizados e condenados por muitos, mas eles
por si mesmos alegremente passaram pelas provações da auto-negação.
Em
seus ensinamentos aos monges, Buddha repetidamente
mostrou as bençãos do “estado sem lar”. O lar que
para a pessoa mundana é um pilar da felicidade, deverá ser evitado por aquele
que procura a mais elevada liberdade espiritual. Essa inversão de valores não
significa um estado mórbido da mente. A pessoa que seriamente trilha a senda da
renúncia assim o faz com pleno conhecimento de suas implicações, suas
incertezas, perigos e sofrimentos.
Uma
pessoa comum raramente aprende alguma coisa com o sofrimento. Atingida pela
atribulação ela se lamenta e se verga sem esperança e então, esquecendo tudo,
procura rir e dançar novamente uma vez que o período de agonia está terminado.
Essa pessoa basicamente nada faz para impedir a repetição periódica do
sofrimento.
Buscadores
espirituais, por outro lado, tiram grandes lições do pesar; para eles o pesar
se torna uma porta para a elevação espiritual. A partir da privação e perda da
fortuna a convicção da vida evanescente amadurece. Desavenças com amigos
conduzem os buscadores espirituais a ver as contradições inerentes à vida – a
face de maya. Fracassos e doença lhes ensinam
humildade. Crises insolúveis os tornam resignados e voltados a Deus. Kunti, a mãe dos Pandavas, orou a
Sri Krishna: “De-me sofrimento, ó Senhor, para que não Te esqueça.”
Humilhação auxilia o aspirante espiritual a desenvolver paciência e perdão. “Ó Tulasi,” escreveu o santo poeta Tulasidas
em um dístico, “vá onde as pessoas não te glorificam. Isto vai manter o seu ego
humilde e a lembrança de Deus será efetiva.” Quando as esperanças dos
aspirantes espirituais são frustradas, a sua frustração se torna uma ocasião
para que pratiquem a retirada da mente do mundo externo.
O
Bhagavad Gita prescreve a
contemplação do sofrimento como uma das disciplinas espirituais para o auto-conhecimento – reflexão sobre os males do nascimento,
morte, envelhecimento, doença e sofrimento.
Por meio de tal contemplação, aprendemos a olhar para a imagem completa
da vida. Normalmente encaramos a vida com muitos preconceitos e falsas
suposições. Nossa experiência é sempre seletiva. Tendemos a ignorar o que nos é
desagradável e nos causa medo, abarcando o que é resplandecente e prazeiroso.
Mas
não é a vida um misto de opostos? A morte não existe lado a lado com a vida, a
doença não caminha ao lado da saúde, a pobreza não se encontra emboscada na
riqueza, a desonra se precipita sobre a fama, a inimizade segue de perto a
amizade e a frustração não desafia a esperança? A dualidade está na própria
textura de nossa existência. Negar isso é auto-ilusão e a auto-ilusão jamais
conduz à paz da mente.
O
buscador espiritual deve examinar a vida em todos os seus aspectos sem
preconceito e medo. Então a mente desenvolve o equilíbrio e se torna preparada
para ver aquilo que se encontra acima das contradições da vida. Durante essa
investigação equilibrada do mundo, o buscador espiritual passa por sofrimento
mental. Muitas pressuposições devem ser abandonadas, muitas falsas expectativas
são despedaçadas, muitos sonhos agradáveis se desfazem. Mas este sofrimento
traz grande força, poder de julgamento e tranquilidade
de temperamento. Esse sofrimento dá ao aspirante a habilidade de olhar além do
superficial e
de colocar-se em contato com aquilo que é realmente estável.
O
sofrimento voluntário para propósitos religiosos pode algumas vezes degenerar
aos poucos em uma mórbida auto-estima. Neste caso o
sofrimento como prática espiritual derrota o seu propósito. Jejuns,
vigílias, celibato e auto-negações similares nunca são
fins em si mesmos. Austeridade como uma simples expressão de uma excentricidade
se torna um obstáculo para experiências espirituais mais elevadas. Um sincero
aspirante espiritual deveria ser muito cauteloso sobre as suas motivações.
Quando
uma pessoa enfrenta o sofrimento com uma atitude correta e como um meio para um
fim mais elevado, ela não pode ser chamada de pessimista. Uma atitude sadia em
relação à vida não é nem pessimista e nem desmedidamente otimista. A sabedoria
não se encolhe quando a infelicidade mostra a carranca, e a felicidade também
não perde o seu equilíbrio quando o prazer bate à porta. A eterna, infinita
Realidade espiritual que está por trás do Universo e no centro de nosso ser
está além da dor e do prazer e todas as dualidades de nossa experiência. Os
aspirantes espirituais procuram manter a sua visão voltada para essa Realidade,
vivendo as suas vidas com o máximo de desapego possível.
Aqueles
que procuram a realização espiritual desenvolvem a capacidade de desconsiderar
o sofrimento. Esta capacidade cresce de uma tangível experiência de alegria e
paz interior como resultado da oração e meditação. Para os aspirantes
espirituais, Deus não é um conceito vazio. Enquanto perseveram em suas práticas
espirituais, Deus se torna mais e mais real para eles. A experiência de Deus
compensa todas as atribulações físicas e mentais que eles tem
suportado em suas jornadas. “O Senhor é minha força e meu canto”, cantou
Moisés. E Santa Tereza de Ávila escreveu em um de seus poemas:
Tendo
a Deus
Nada falta;
Deus só, é
suficiente.
Ramprasad, o grande santo de Bengal,
expressou um sentimento similar de plenitude nas últimas linhas de uma de suas
canções: “O prazer e o sofrimento agora são a mesma coisa; um mar de
bem-aventurança está nascendo de meu coração.”
Homens
e mulheres, não necessariamente religiosos, que dedicaram as suas vidas ao
serviço da humanidade, tiveram de passar por terríveis sofrimentos. Muitos
deles suportaram suas provações sorridentemente. Sofrer para eles é uma parte
de suas missões; é um sofrimento abençoado. Grandes personalidades espirituais,
depois de passar através de provações de auto-negação
em seus estágios de prática espiritual, devem enfrentar o sofrimento novamente em
uma forma diferente. Impelidos pela compaixão por todos os seres que
invariavelmente se segue à realização de Deus, estas grandes almas se lançaram à serviço da humanidade. Embora tenham se elevado acima das
dualidades deste mundo de maya, essas grandes almas
escolheram viver e trabalhar aqui. Alegremente elas fazem frente ao que lhes é oferecido – crueldade, ódio, animosidade, perseguição e
mesmo a morte. O seu sofrimento é por vezes pungente, mas para eles é um
sofrimento abençoado.
O
poema do Swami Vivekananda
“Anjos desapercebidos” nos oferece uma conclusão
digna:
Então veio o sofrimento – e a riqueza e
o poder se foram –
E fez com que encontrasse parentesco com
toda a raça humana
Nos gemidos e nas lágrimas, e embora
seus amigos sorrissem,
Seus lábios falariam com um tom de voz
agradecido:
“Oh
abençoada infelicidade!”